23 de novembro de 2010

Conto do frágil Ser

Cai o ovo no chão. Depois que aconteceu a queda da mão abriu-se nele uma pequena fenda, por culpa do duro chão de barro socado.
A menina depois de uma reação digna de uma malabarista, fica totalmente estática junto à parede. Incrédula, imaginativa e tristonha. Sua tristeza escorre devagar pelo canto dos olhos. Doze anos; franzina e inacabada qual uma de seis. Sua barriga tem o tamanho de um feto com pernas e coluna já definidas. Engravidada por um moço grande, bruto e forte, um homem de verdade.

"O ovo da vovó!", pensa.
-“Filha, achou ovo?” vem do quarto (vão, espaço para dois passos longos) a pergunta, numa voz de boca costurada.

-“Já vai vovó!”
Abre a geladeira. Não tem mais nenhum ovo.
“Geladeira não põe ovo, poderia pôr, como em casa de gente rica”. Pensa angustiada.
A geladeira não tem nada, só ferrugem e uns pedaços de cenoura congelada. Essa é a função da geladeira, congelar cenouras e línguas. E não ter ovos, claro. Rói a unha roída, tirando e chupando o caldinho de sangue. Sentindo um gostinho bom de si mesma.

-“Filha, tem gás?” range a avó que teve força na vida pra fazer de tudo.
-“Não, tem gás sim!” Diz pra avó. “Não tem gás.” Balbucia baixinho.
“Deixa que eu vou ai pra te ajudar... ai!”
“Não, não vó, a senhora tem que ficar na cama (colchão usado com cheiro de suor eterno). Eu já...
O ovo começa a se mexer na cabeça da menina. Rolando bem na sua frente pelo chão irregular, detido enfim no pé do fogão sujo de graxa. Ela olha fixamente para ele. Olha com tanta curiosidade, que o ovo some e reaparece varias vezes da sua vista. Tem-se então um pequeno estalido, quase surdo.

Ela dá dois passos para frente e se agacha perto do ovo, deitando infantilmente seu feto entre as pernas marcadas de feridas e pequenos arranhões. Se chegasse um pouco mais pra frente, poderia se dizer que ela o tinha posto.

Coça a cabeça e solta um pequeno peido (tímida flatulência) de nervosismo (fome).
“É um pinto! Um pintinho nascendo!” Sua tristeza se transforma rapidamente numa alegria ingênua. Mas se contem, falando bem baixinho e rindo com um som vindo do desejo de ser criança. Seus olhinhos remelentos ficam quase fechados a observar algo para ela tão novo.

“Um pintinho!” Ri fascinada, com a mão na boca chupando os dedos secos e roídos.
- Vó, ta quase fervendo, é que o gás ta muito fraquinho! - diz projetando a voz em direção ao quarto, mas pensando na fraqueza do 'serzinho'.
A menina cutuca a parte já quebrada do ovo, tirando um pedaço da casca. Então aproxima sua cabeça, ficando de joelhos e empinado agora a bunda pra cima, com o vestido deixando mostrar sua calcinha remendada e suja de terra.
Não entende o que acontece lá dentro nem que parte do todo está vendo.
“Será que tem mesmo um pintinho aqui dentro”, reflete (matuta).
-É o olho! É o olhinho dele!” fala com ar de descobridora. - Escorre-lhe no canto da boca um filete de baba, que ela suga devagar. Depois passa a língua no mesmo canto para que não se atrevam saírem outros mais grossos. Tem os movimentos dementes.
Expõe então seu sorriso amarelado, coroando a careta com a suspensão das duas sobrancelhas.
Prepara-se então pra tirar mais casquinhas.
Depois de tirar totalmente uma das faces do ovo rasgou com um palito queimado que encontrou no chão o envolto vital que ainda separava a ave do ar.
Os olhinhos lá dentro começaram a piscar de saudade. Piscando devagar para não perder nenhum momento. Olhando tudo aquilo que começava a entender agora em seu redor.
Algumas aves são feitas pra voar alto, outras apenas andam ciscando a terra e dando pequenos saltos. Tem os tipos velozes com passos largos e desajeitados. Algumas chamadas de ave outras de pássaro, mesmo sendo essencialmente iguais. Tem das que nascem sem saber que sua raça é servida como alimento. De umas outras, são arrancadas as penas para enfeite. E há as que vivem eternamente dentro de um cárcere.
Contudo todas possuem uma essência, que não precisa ser perfeitamente entendida ou metodicamente classificada. Sendo até crime isso, por tirarem delas o direto de serem apenas, cada uma com suas características, impares.
Aves sempre podem voar em nossa mente. Mesmo que alguns digam que há determinados tipos de aves não nascem para ganharem os céus. Mas nos matamos para decodificar isso, criando até evoluções.

As aves surgiram para mudarem com as estações e cantarem livremente.
A menina não estava pensando nisso, mas ela espontaneamente se deixou invadir por uma vontade de chorar. Como, de um ovo igual a tantos outros, nascia um ser tão perfeito e único, se perguntou.

Por um momento quis tirá-lo dali. Queria pôr-se no lugar dele, na sua conchinha; e depois uniria as casquinhas que não eram dela para sentir o que ele sentia. Seria proteção, incerteza, ansiedade, medo?
A avezinha continuava a piscar suas penugens esbranquiçadas, sentindo com a claridade que vinha de fora um cansaço dentro de sua casca forte. Começou a lutar mais uma vez.
Poderia por mais um pouco ser forte. Tinha um mundo lá fora que não teve oportunidade de a conhecer ainda. E de onde vinha a sua respiração, saiu um visgo translúcido. Era o ultimo vestígio de seu próprio ventre. Queria poder olhar mais uma vez para sua menininha. Era injusto não lhe darem forças pra falar uma ultima vez.
Mas não se acomodou, apenas desistiu de querer entender tudo.

[Robson W.]






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